O regime jurídico-tributário do ajuste a valor presente
- Antônio Claret de Souza Júnior
- 8 de ago. de 2017
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Tempo é dinheiro, disse Benjamin Franklin. É bem verdade que com a frase ele pretendia ilustrar o custo de oportunidade do lazer, mas é possível utilizá-la também para fazer referência ao valor do dinheiro no tempo. Com efeito, quer por fatores econômicos, quer por questões psicológicas (a angústia da espera), quer por limitações fisiológicas (a finitude da vida humana), o homem prefere bens presentes a bens futuros. Daí por que, para abrir mão de um determinado bem no presente, o ser humano exige uma maior quantidade desse bem no futuro — a cobrança de juros sobre o capital é o exemplo mais vivaz dessa preferência temporal. Também não destoa da ideia a mensuração de ativos e passivos a valor presente.
Tradicionalmente, a contabilidade registrava — e ainda registra em diversas hipóteses — ativos e passivos pelo custo histórico: uma venda a prazo, pactuada por valor fixo e sem previsão expressa de juros, por exemplo, era registrada no ativo e nas contas de resultado pelo valor constante do documento fiscal [1]. Isso, porém, prejudicava a qualidade da informação contábil, haja vista que ativos e passivos decorrentes de operações de longo prazo eram registrados por um valor que não refletia seu custo presente, desconsiderando os juros embutidos na operação.
A partir da convergência das normas contábeis brasileiras às normas internacionais levada a cabo pela Lei nº 11.638, de 28 de dezembro de 2007, e pela Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009, fruto da conversão da Medida Provisória nº 449, de 3 de dezembro de 2008, tornou-se obrigatório o ajuste a valor presente dos elementos do ativo decorrentes de operações de longo prazo e das obrigações, encargos e riscos classificados no passivo não circulante, sendo os demais elementos, tanto do ativo quanto do passivo, ajustados quando relevantes os efeitos (art. 183, VIII, e art. 184, III, ambos da Lei nº 6.404, 15 de dezembro de 1976). Trata-se, obviamente, de materialização do princípio da realidade sobre a forma (substance over form principle) e da política de valor justo (fair value — registre-se, porém, que valor presente e valor justo não são sinônimos).
Pois bem, mas o que vem a ser valor presente? Imagine-se, por exemplo, um recebível de R$ 110.000,00 (cento e dez mil reais), a ser realizado em 1 (um) ano a uma taxa de juros de 10%. Ajustando este fluxo de caixa futuro ao valor presente — PV = FV/(1+i)^n, onde PV é o valor presente, FV, o valor futuro, i, a taxa de juros, e n, o número de períodos —, obtemos o montante de R$100.000,00 (cem mil reais) — este é o valor atual daquele fluxo de caixa futuro. Pode-se, pois, dizer que o valor presente é o valor corrente de um fluxo de caixa futuro.
Os procedimentos contábeis para ajuste a valor presente de ativos e passivos constam do Pronunciamento Técnico nº 12, do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC 12), de observância obrigatória para as companhias abertas (Deliberação CVM nº 564, 17 de dezembro de 2008) e para os profissionais de contabilidade das entidades não sujeitas à regulamentação contábil específica (Resolução CFC nº 1.151, de 23 de janeiro de 2009). [2]
Ativos, passivos e situações que apresentarem uma ou mais das seguintes características, diz o item 7 do CPC 12, devem ser ajustados a valor presente: (a) transação que dá origem a um ativo, a um passivo, a uma receita ou a uma despesa ou outra mutação do patrimônio líquido cuja contrapartida é um ativo ou um passivo com liquidação financeira (recebimento ou pagamento) em data diferente da data do reconhecimento desses elementos; (b) reconhecimento periódico de mudanças de valor, utilidade ou substância de ativos ou passivos similares emprega método de alocação de descontos; e (c) conjunto particular de fluxos de caixa estimados claramente associado a um ativo ou a um passivo.
Para realizar o ajuste é importante definir a) o valor do fluxo futuro, b) a data em que o fluxo ocorrerá e c) a taxa de desconto a ser aplicada. O valor futuro do fluxo e a data em que ocorrerá normalmente estão discriminados na documentação da operação, já a taxa de desconto está amiúde implícita e depende de ponderação por parte da área contábil da pessoa jurídica. Nesta última hipótese, o CPC 12 determina a utilização de taxa de desconto que reflita as melhores avaliações do mercado quanto ao valor do dinheiro no tempo e os riscos específicos do ativo e do passivo (item 21).
Realizado o ajuste a valor presente do ativo ou do passivo, a reversão deverá ser reconhecida como receita ou despesa financeira, observado o princípio da competência, salvo se a pessoa jurídica fizer do financiamento de seus clientes seu objeto social, quando a reversão deverá ser classificada como receita operacional (item 23 do CPC 12).
Para descer no grau de abstração, vejamos um exemplo de ajuste a valor presente de ativo, cujos dados foram extraídos do Anexo V da Instrução Normativa nº 1.700, de 14 de março de 2017, da Secretaria da Receita Federal do Brasil.
Imagine-se que um comerciante venda uma mercadoria por R$ 120.000,00 (cento e vinte mil reais), em 02/01/2015, ao custo de R$ 70.000,00 (setenta mil reais), para ser paga em 30/06/2016. Utilizando a taxa de desconto fornecida pela tesouraria e com o auxílio da matemática financeira, calcula-se que o valor a ser apropriado a título de juros nos anos de 2015 e 2016 será, respectivamente, R$ 13.000,00 (treze mil reais) e R$ 7.000,00 (sete mil reais).
Os lançamentos contábeis a serem efetuados no reconhecimento inicial da operação são:
DClientesR$ 120.000,00
CReceita Bruta de Vendas R$ 120.000,00
DAjuste a Valor Presente s/ Receita BrutaR$ 20.000,00
CJuros a Apropriar R$ 20.000,00
DCusto das Mercadoria VendidasR$ 70.000,00
CEstoques R$ 70.000,00
Ao fim do exercício apropriam-se os juros do período:
DJuros a ApropriarR$ 13.000,00
CReceita financeira R$ 13.000,00
A Demonstração do Resultado do Exercício fica assim:
Receita Bruta de VendasR$ 120.000,00
(–)Ajuste a Valor Presente s/ Vendas(R$ 20.000,00)
(=)Receita LíquidaR$ 100.000,00
(–)Custo das Mercadorias Vendidas(R$ 70.000,00)
(=)Lucro BrutoR$ 30.000,00
(+)Receita FinanceiraR$ 13.000,00
(=)Lucro Líquido antes do IRPJR$ 43.000,00
No exercício seguinte, os juros restantes serão apropriados:
DJuros a ApropriarR$ 7.000,00
CReceita financeira R$ 7.000,00
E o resultado do exercício ficará assim:
(=)Lucro BrutoR$ 0,00
(+)Receita FinanceiraR$ 7.000,00
(=)Lucro Líquido antes do IRPJR$ 7.000,00
Como se vê, sem o ajuste, o lucro líquido no primeiro exercício seria R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), e não R$ 43.000,00 (quarenta e três mil reais). Por outro lado, no exercício seguinte não haveria lucro líquido, porque não haveria receita financeira a apropriar.
No caso de ajuste a valor presente de passivos, embora os lançamentos contábeis sejam um pouco mais complexos a depender da contrapartida do passivo, ocorre o mesmo fenômeno, o resultado do exercício sofre os efeitos do ajuste, podendo significar um resultado maior ou menor a depender do exercício sob análise.
Tendo em vista que a taxa de desconto a ser aplicada muitas vezes dependerá de julgamento subjetivo por parte da pessoa jurídica, bem como o fato de que o resultado do exercício pode ser alterado, a legislação tributária trata de anular estes efeitos.
Vejamos, pois, a seguir como a legislação do imposto de renda, da contribuição social sobre o lucro líquido, da contribuição para o PIS e da COFINS disciplinam o ajuste a valor presente — sem a pretensão de esgotar o assunto, em virtude da limitação de espaço.
IRPJ e CSLL. O ajuste a valor presente de ativos, dispõe o art. 4º da Lei nº 12.973, de 13 de maio de 2014, somente serão considerados na determinação do lucro real no mesmo período de apuração em que a receita ou resultado da operação deva ser oferecido à tributação. Embora o dispositivo mencione apenas em lucro real, aplica-se também à determinação do resultado ajustado (art. 2º, §1º, c, 3, da Lei nº 7.689, de 15 de dezembro de 1988, e art. 90 da IN RFB nº 1700, de 2017).
No caso do exemplo citado acima, a apuração do lucro real relativo ao ano-calendário 2015 ficaria assim:
(=)Lucro Líquido antes do IRPJR$ 43.000,00
(+)AdiçõesR$ 20.000,00
(–)Exclusões(R$ 13.000,00)
(=)Lucro realR$ 50.000,00
Note-se que o valor total do ajuste a valor presente foi adicionado, e o valor da receita financeira reconhecida, excluído.
Por sua vez, no ano-calendário 2016, a apuração do lucro real ficaria desse modo:
(=)Lucro Líquido antes do IRPJR$ 7.000,00
(+)AdiçõesR$ 0,00
(–)Exclusões(R$ 7.000,00)
(=)Lucro realR$ 0,00
O lucro líquido antes do IRPJ seria de R$ 7.000,00 (sete mil reais) em decorrência do reconhecimento da receita financeira decorrente do ajuste a valor presente. O montante, porém, deve ser excluído na apuração do lucro real, haja vista que a diferença do ajuste a valor presente foi oferecida à tributação no ano anterior.
No caso do ajuste a valor presente de passivo, a lógica é a mesma. De acordo com o art. 5º da Lei nº 12.973, de 2014, os valores decorrentes do ajuste a valor presente de passivo somente serão considerados na determinação do lucro real no período de apuração em que i) o bem for revendido, no caso de aquisição a prazo de bem para revenda; ii) o bem for utilizado como insumo na produção de bens ou serviços, no caso de aquisição a prazo de bem a ser utilizado como insumo na produção de bens ou serviços; iii) o ativo for realizado, inclusive mediante depreciação, amortização, exaustão, alienação ou baixa, no caso de aquisição a prazo de ativo não classificável nos incisos I e II do caput; iv) a despesa for incorrida, no caso de aquisição a prazo de bem ou serviço contabilizado diretamente como despesa; e v) o custo for incorrido, no caso de aquisição a prazo de bem ou serviço contabilizado diretamente como custo de produção de bens ou serviços.
Caso a operação ajustada a valor presente deva ser liquidada em moeda estrangeira, é possível que os juros a apropriar sofram variações monetárias ativas ou passivas. Nesse caso, o art. 12 da Lei nº 12.973, de 2014, determina a exclusão das variações monetárias da determinação do lucro real, o que também vale para o resultado ajustado (art. 96 da IN RFB nº 1.700, de 2017).
Vale lembrar que os valores decorrentes do ajuste a valor presente de ativos integram a receita bruta. Isso decorre da própria definição de receita líquida contida no art. 12, §1º, do Decreto-lei nº 1.598, de 26 de dezembro de 1977, com a redação dada pela Lei nº 12.973, de 13 de maio de 2014. Segundo o dispositivo, a receita líquida é a receita bruta diminuída, entre outras rubricas, dos valores decorrentes do ajuste a valor presente. Ora, se se deduz o ajuste a valor presente da receita bruta para obter a receita líquida, é porque o ajuste integra a receita bruta. De todo modo, talvez receoso das definições teratológicas que nossos tribunais vêm dando ao conceito de receita bruta, o legislador deixou claro no §5º do mesmo artigo que o ajuste a valor presente integra a receita bruta.
Como o ajuste integra a receita bruta, é natural que ele integre também a base de cálculo sobre a qual incidem os percentuais do regime de estimativas, para as pessoas jurídicas que apuram o IRPJ e a CSLL com base no lucro real e no resultado ajustado anual (art. 2º da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e art. 20 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995), bem como a base de cálculo sobre a qual incidem os percentuais de presunção, para as pessoas jurídicas optantes pelo recolhimento do IRPJ e da CSLL nos regimes do lucro e do resultado presumidos (art. 25 da Lei nº 9.430, de 1996, e art. 20 da Lei nº 9.249, de 1995).
PIS/COFINS. No caso da contribuição para o PIS e da COFINS, no regime cumulativo, a base de cálculo é a receita bruta definida no supracitado art. 12 do Decreto-lei nº 1.598, de 1977. Logo, os valores decorrentes do ajuste a valor presente integram a base de cálculo. Por sua vez, no regime não cumulativo, a Lei nº 12.973, de 2014, alterou o art. 1º, §1º, da Lei nº 10.637, de 30 de dezembro de 2002, e o art. 1º, §1º, da Lei nº 10.833, de 29 de dezembro de 2013, para constar expressamente que o ajuste a valor presente integra a base de cálculo das contribuições.
Em breve síntese, pois, pode-se afirmar que o ajuste a valor presente de ativos e passivos, clara expressão da mudança de uma contabilidade baseada em regras (rule-based) para uma contabilidade baseada em princípios (principle-based), mormente porque traz em si certos aspectos subjetivos que não se coadunam com a objetividade demandada pelo direito tributário, tende a ser anulado pela legislação, mantendo a neutralidade da alteração dos critérios contábeis.
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[1] IUDÍCIBUS, S. et al. Manual de contabilidade societária. São Paulo: Atlas, 2010, p. 104-105.
[2] Idem.
Disponivel em https://jota.info/colunas/contraditorio/o-regime-juridico-tributario-do-ajuste-a-valor-presente-07082017
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